29 de julho de 2009

Short Stories vol. IV - O descanso

O vento frio consegue passar pelas frestas da janela, fazendo as juntas das mãos doerem. Tenta aquecê-las, enquanto observa as gotas escorrendo vagarosamente pelo vidro da janela e a cidade ao fundo. Paris há muito tempo já não lhe passa a sensação de lar.

Lembra do dia em que , largando o pouco que lhe restara de sua vida anterior, decidira não voltar mais para a cidade em que morou por trinta anos. A morte é a única certeza do ser humano e ela imaginava então que logo pudesse a encontrar. Porém cinquenta anos se passaram e ela ainda vivia.

Fizera fortuna com sua arte. O mercado europeu se encantou prontamente com aquela jovem que abandonara seu país, seus bens, sua carreira promissora para produzir telas carregadas de um rancor sobre o qual ela sempre se recusou a falar.

O pug Toile ronca pedindo sua atenção. A paixão por cães era a única coisa que ela admitia ter trazido de sua vida anterior. Tenta se abaixar para acariciar o pequeno animal mas o físico de sua juventude já não estava presente. Mais dores nas juntas. Desta vez os joelhos desistem. Senta-se no sofá e espera que Toile pule no seu colo.

Olhou para seu primeiro quadro que lhe trouxe fama.Havia gastado muito dinheiro para localizá-lo e comprá-lo de volta. Muito tempo a separava do dia em que descarregara toda sua frustração naquela tela.

Por anos não quis pensar em nada. Seus pincéis depuravam sua angústia, enquanto enterrava fundo na mente os fatos e pessoas que queria esquecer. Sabia que era impossível apagá-los mas precisava ter uma forma de suportar a dor.

Lembra do abraço apertado que dera em seu pai no dia em que fora embora. Sabia que não o veria mais. Dissera isso e o pai respondeu com um leve balançar de cabeça, compreendendo que sua filha estava tomando seu próprio caminho.

Percorre com os olhos cada canto da tela. Os tons e as texturas lhe trazem de volta as emoções daquele dia. Ao ver os tons negros sente o aroma do cabelo dele invadir seus pensamentos.

Estaria ele vivo? Ela sentia que não. A morte para ela era o objetivo final. Algo que chegaria no momento certo para cada um. Teria ele sido feliz? Ela não desejava nada menos do que isso.

Ela mesmo não sabia definir felicidade. Dinheiro, fama? Ela tem isso. Não... isso não é felicidade. Mas sabia que a vida lhe estendera a mão e lhe dera oportunidades de mitigar a dor. Conhecera o mundo todo, conhecera muitas pessoas, tivera muitos amantes... Mas sentia o vazio dentro dela, o vácuo que lhe acompanha por longos anos.

Anos nos quais não derrubara nenhuma lágrima. Costumava dizer que tinha esgotado o seu estoque de lágrimas... Já havia chorado muito nessa vida. Depois ficara como que anestesiada. Não sentia como antes. Apenas os pincéis externavam suas emoções.

Concentra-se nos tons verdes e os olhos dele se materializam na tela. Aos poucos a tela já não existe... Vê uma janela, e ele está ali. Seu coração aperta, o ar começa a rarear. A taça de vinho cai no chão. Toile começa a latir mas o som lhe parece muito longe.

Vê agora claramente o homem que amou e que a deixara. Sente finalmente que a hora chegou. Já não ouve mais os latidos, já não sente mais o coração, nem a necessidade de respirar. Derrama uma única e última lágrima.

Sussura o nome dele.

E se vai...

2 comentários:

N. Ferreira disse...

Não sei o que senti: se ela se foi em paz ou se foi cheia de arrependimentos e mágoas.
Talvez nada seja assim tão absoluto. Talvez dentro de toda calmaria more alguma tempestade.
Lindo texto, adorei. Beijos

Leonardo disse...

Nana,

Nem eu que escrevi soube dizer ao certo o que ela sentia. Mas certamente não era absoluto. Entre o branco e o preto há muitos tons de cinza. Obrigado pelo elogio. Adoro seus comentários!

Beijo