27 de abril de 2009

Short stories - vol. II - Diário

26/05
Muita gente não entendia porque eu não queria ter filhos. Acho que hoje me dariam razão. Vendo meus amigos com seus filhos, algumas vezes até tive vontade de ser pai. Mas seria muito egoísmo de minha parte. Os sinais já estavam lá há muito tempo... Eu não poderia condenar um filho a tanto sofrimento.

10/06
Lembro de algumas cenas da minha infância. Deitar sob um céu negro, todo pontilhado pelas mais brilhantes estrelas. Tomar banho de cachoeira nas férias de verão. Brincar na rua. Caminhar despreocupado na escuridão da praia deserta. Tinha certeza de que meu filho não viveria experiências como estas.

Eu achava que havia algo errado. Temia pela disparada da violência. Temia a vingança da natureza, que havia sofrido tanto na mão dos homens. Porém nunca imaginei o que estava vindo.

A maioria das pessoas nada viu. Como no conto da rã na chaleira, o aumento gradual da temperatura fez com que nós virássemos um belo ensopado de batráquios... Tivessem nos colocado na chaleira com a água fervendo e talvez a situação hoje fosse diferente.

A verdade é que eu mesmo não posso me excluir do grupo das rãs. Vi as coisas se deteriorarem, mas não acreditei que fossem chegar neste ponto. Nada fiz. Mas haveria algo que eu pudesse fazer?

13/06
Hoje sonhei com crianças. Não sei se ainda existem crianças no mundo. Com o passar de tempo, percebeu-se que elas não tinham muita resistência ao vírus. As vacinas e os antivirais, que no início da epidemia tiveram algum resultado, logo perderam efeito para as novas variantes do H1N1. Os adultos contaminados conseguiam resistir à doença por mais tempo. As crianças foram as primeiras vítimas. A taxa de mortalidade era altíssima.

21/06
A solidão nunca foi um problema para mim. Sempre gostei de ficar só com a minha companhia. Mas hoje ela me incomoda. Como consegui chegar tão longe? Será algum tipo de imunidade? Foi apenas sorte?

15/07
Depois que meus pais foram internados, consegui fazer um estoque de alimentos. No começo nem todos acreditaram na gravidade da situação. Não tive dificuldades. Tranquei-me no apartamento e segui os procedimentos indicados na TV. Hoje faz uma semana que não há mais transmissões na TV. Ainda consigo ouvir a rádio da capital.

21/07
Hoje foi feita a última transmissão de notícias pelo rádio. Disseram que a situação é gravíssima. O número de mortos no mundo chega aos milhões. Os funcionários foram mandados para suas casas e o narrador encerrou seu boletim desejando boa sorte aos ouvintes. Desde então a programação tem sido de música clássica.

22/07
O rádio e a TV ficam ligados 24 horas. Tenho esperança de receber alguma notícia, mas só recebo um loop ininterrupto de músicas clássicas.

29/07
Estou sem energia elétrica. No início pensei que tinha esquecido de pagar a conta. Depois percebi que na verdade não havia nem mesmo recebido a conta.

30/07
A noite passou e não havia nenhuma luz na cidade. Definitivamente o problema não foi na conta.

05/08
Talvez tenha havido algum tipo de toque de recolher. Talvez as pessoas por si mesmas tenham passado a evitar as outras com medo do contágio. O fato é que as ruas estão vazias. Os saques, comuns nos primeiros meses, já não vejo mais. Se ainda acontecem, ao menos não causam nenhum alvoroço.

03/09
Cortado o fornecimento de água. Meu Deus, isso é muito sério!

15/09
A necessidade de água foi maior do que qualquer medo. Abri a varanda e deixei os baldes enchendo com a chuva! Como é bom tomar banho.

02/10
Meu estoque de comida é baixo. Mas me preocupo mais ainda com a água. Tenho feito um racionamento mas sei que em breve terei que tomar alguma atitude.

20/10
Acabou a água. Devo ou não tomar a água da chuva?

01/11
É claro que eu tomei a água da chuva. Diminuí ao máximo o consumo de comida. As roupas estão cada vez mais largas.

16/11
Estou fraco. Ouvi vozes no corredor esta noite. Não consegui ver ninguém. Chamei e não houve resposta.

20/11
Se eu não sair em busca de comida, vou morrer. Decidi aumentar a ração pra me fortalecer. Em duas semanas eu saio.

27/11
Me sinto melhor. Meus músculos ainda estão fracos mas já sinto que ao menos conseguirei descer as escadas. Mesmo assim tenho medo do que irei encontrar nas ruas.

04/12
A comida acabou. Hoje é o dia. Estou de saída. Espero voltar com alguma comida. Mas se eu não voltar e alguém encontrar este diário, diga... Droga! Não já tenho ninguém para dizer mais nada...

4 comentários:

A Madrasta Má disse...

olá cheguei meio de pára-quedas aqui... gostei do diário, a situação se passa onde? tem posts anteriores me manda o link.... bjinhos da Madrasta!

Fofa disse...

Leozinhooooooooo!!!!

Adorei isso!!!!

Já te disse o que me lembrou, ne?

Beijocas!!!

Ah, sabe porque não vou ver o Mickey com vocês? Becausa I'm going to shop Miami!!!
Hahahaha

Leonardo disse...

Olá Madrasta,

Ontem eu estava lendo o jornal e comecei a pensar "...e se essa gripe suína sair do controle?". Daí surgiu a idéia do diário. Mas é um post completamente ficcional, passado num lugar qualquer e num futuro distante. Ou assim espero!

Bjos e obrigado pela visita!!


Oi Fofa!

Que vergonha que eu ainda não li Anne Frank. Enquanto eu escrevia eu pensava mais em um "Extermínio" sem zumbis... ;-)

Shopping in Miami! Sounds fantastic!!

Beijo!!

Gislaine Marques disse...

A mim lembrou o ensaio sobre a cegueira! Achei muito bom! Bjo.